ANA BOTTALLO SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A pílula anti-Covid da MSD (empresa conhecida como Merck nos Estados Unidos e Canadá) foi a primeira droga oral aprovada para o combate ao vírus Sars-CoV-2 no mundo, no início de novembro.
Conhecido como molnupiravir, o medicamento antiviral teve eficácia em estudos preliminares de redução de 50% para hospitalização e morte, número que depois caiu para 30%, após novos dados serem avaliados pela companhia em 26 de novembro.
Mesmo assim, um painel do FDA (agência americana que regulamenta drogas e produtos alimentícios no país) recomendou em uma votação acirrada –13 votos a favor e dez contra– a autorização emergencial da pílula no último dia 30. A recomendação do painel não é definitiva, mas serve como orientação para o órgão aprovar o registro do remédio.
No Brasil, o laboratório fez um pedido de uso emergencial à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no final de novembro. A agência ainda não tomou uma decisão.
Segundo os especialistas, o benefício do uso da pílula contra morte por Covid-19, especialmente frente a novas variantes do vírus, como a ômicron, superam os seus riscos. Entre eles estão o de gerar mutações no Sars-CoV-2 que podem levar ao aparecimento de cepas resistentes e com potencial mais agressivo.
Os questionamentos sobre a probabilidade de essas formas serem um risco talvez maior do que antes se imaginava, porém, foram levantados por alguns especialistas.
O primeiro deles foi o virologista William Haseltine, ex-pesquisador da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, conhecido por seu trabalho com o HIV. Em uma entrevista para a revista Forbes, o cientista disse estar “profundamente preocupado com as novas cepas”.
Recentemente, outro cientista a fazer o alerta foi o evolucionista e professor da Universidade de Washington Carl Bergstrom. Em sua conta no Twitter, o pesquisador levantou a hipótese de que o uso em larga escala da pílula da MSD possa causar mais riscos à população do que benefícios àqueles que fazem uso da terapia.
As dúvidas pairam em cima do mecanismo de ação da droga: o molnupiravir age se ligando ao RNA do Sars-CoV-2 com um aminoácido [parte de uma proteína] trocado, o que causa erros de cópia do mesmo e impede sua replicação. Porém, justamente por ser uma espécie de “chave trocada” do genoma, o fármaco é mutagênico, ou seja, pode gerar mutações no vírus.
“Ele induz de fato erros de cópia no Sars-CoV-2, mas um ponto a se destacar é que não observamos até agora um número muito elevado de mudanças no genoma viral, então talvez a frequência seja muito baixa. Mas é claro que existindo essa possibilidade é preciso ser monitorado”, explica Fernando Spilki, virologista e coordenador da Rede Corona-ômica, iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para observar a evolução do coronavírus no Brasil.
Como alguns desses erros levam a formas do vírus que são inviáveis, a preocupação de que tais mutantes possam ser selecionados por pressão evolutiva e “se espalhem” é menor, embora não inexistente.
“Tudo isso ainda está no campo das hipóteses, não é possível prever quais mutações vão surgir e se vão haver mecanismos de seleção, mas alguns exemplos no passado mostram vírus adquirindo resistência pelo uso prolongado de drogas”, afirma.
Spilki cita o caso do antiviral oseltamivir, testado contra o vírus H1N1 e comercializado com o nome de Tamiflu. O uso indiscriminado dele levou ao surgimento de cepas resistentes.
“Qualquer nariz escorrendo a pessoa já ia lá e tomava oseltamivir, então em questão de meses surgiram amostras resistentes à droga, mas se houver um uso correto, com acompanhamento médico, o risco é ínfimo”, diz.
Para Esper Kallás, infectologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, o período de uso da droga, logo no início da infecção e para casos muito específicos em que há o risco de evolução para quadro agravado de Covid, deve dificultar essa pressão seletiva.
“O uso de qualquer antiviral vai ter sim uma chance pequena de causar mutações, mas a preocupação maior é quando há um tempo de exposição ao medicamento prolongado, pois, aí sim, o vírus pode sofrer uma pressão evolutiva e se perpetuar”, explica ele, que é colunista da Folha.
Como as mutações ocorrem de maneira aleatória, a seleção natural só vai agir naquelas formas que representem algum tipo de vantagem adaptativa –por conseguir evadir o mecanismo de ação da droga ou de defesa do organismo, por exemplo– ou então na chamada “seleção de base”.
“São essas mutações que acabam sendo selecionadas em conjunto com outras que teriam uma vantagem, mas isso ocorre principalmente em pacientes imunocomprometidos ou que apresentam um quadro de infecção crônico, e aí a seleção não tem mais a ver com o uso da droga, mas sim com o tempo de replicação do vírus no organismo que está debilitado”, diz.
Em nota enviada à reportagem, a MSD Brasil não comentou sobre a possibilidade de cepas resistentes aparecerem com o uso da droga. A empresa destacou que o molnupiravir atua prevenindo a replicação do vírus e tem demonstrado eficácia clínica consistente contra diversas variantes.
Outra droga antiviral utilizada e aprovada no tratamento contra a Covid, o remdesivir, até agora, não apresentou o surgimento de cepas resistentes. “Porém seu uso é bem mais restrito, em hospitais, e não é tão disseminado”, explica Spilki.
Para os especialistas, contudo, a recomendação do tratamento com o molnupiravir, de dois comprimidos por dia por cinco dias, diminui o risco de ocorrência da pressão seletiva justamente porque, ao final de até quatro dias, a carga viral no organismo tende a ser muito baixa.
“O problema é quando há a interrupção do tratamento ou a não aderência ao tratamento, nesses casos pode, sim, haver a seleção de formas resistentes, mas daí para sair do campo do indivíduo e se espalhar para a comunidade é um salto de crendice”, avalia Kallás.
De todo modo, será preciso fazer o monitoramento e sequenciamento constante para identificar as mutações logo no início, ressalta Spilki.
“A questão principal é em qual velocidade ou frequência isso pode ocorrer. Se for tão baixa quanto a ocorrência, por exemplo, de coágulos raros após a injeção de algumas vacinas contra Covid, de 1 para 250 mil casos, ainda assim o benefício do uso da droga supera os riscos”, diz o virologista.
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