O enfermeiro e bacharel em direito Victor Manoel Lima Araújo, de 37 anos, foi diagnosticado em 2017 com transtorno afetivo bipolar, que está associado a alteração de humor. Para tratar o problema, o maceioense usou, por três anos, três comprimidos por dia, o que trazia prejuízos para o estômago, como ele conta. Foi através de uma amiga psicóloga que ele descobriu um tratamento alternativo, percebido ainda como um tabu para a sociedade brasileira: o uso da Cannabis Medicinal.
“Hoje em dia eu tomo apenas dois comprimidos [por dia] e os óleos da Cannabis de manhã (THC) e de noite (CBD). Minha qualidade de vida melhorou ainda mais com a terapia canábica. Hoje durmo melhor, a ansiedade não me incomoda mais, penso com mais clareza, tenho o humor em estabilidade e consigo levar uma vida normal”, conta o enfermeiro, acrescentando que reduziu a sensação de enjoos provocados pelos medicamentos.
Não é somente Victor que usa a Cannabis como tratamento medicinal na família. A mãe dele também usa o meio para auxiliar nos cuidados com a saúde. Ela tem 69 anos e é portadora de Alzheimer e Parckinson.
“Houve um dia aqui em casa que ela me agrediu com cinco murros no rosto. Percebi que era necessário outro tipo de tratamento. E com a cannabis, ela melhorou muito o humor, a agressividade desapareceu, as mãos pararam de tremer. Ela também parou de repetir os mesmos assuntos e forma novas frases, acessa outras memórias”, afirma.
O uso da cannabis para fins medicinais ainda é um tema polêmico na sociedade brasileira. O tema foi pauta de debate em audiência pública promovida pela Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE) na última segunda-feira (13), promovida pelo deputado Lobão (MDB). Na ocasião, médicos, pacientes e familiares, autoridades do Ministério Público e Poder Judiciário estiveram presentes para defender o acesso desse tipo de tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS).
O médico clínico boliviano Freddy Mundaka erradicado em Alagoas foi um dos profissionais que esteve presente na audiência. Ele é pioneiro no estado alagoano em prescrição de cannabis medicinal, além de ser estudioso dos beneficios terapêuticos da planta nas mais diversas enfermidades, como ansiedade, insônia, depressão, doenças imunológicas, neurodegenerativas, a exemplo do Parkinson e Alzheimer, dor crônica, dentre outros.
Fundador do Instituto Mundaka, localizado em Maceió, que auxilia pacientes que precisam de acompanhamento e orientações sobre a terapia, ele prescreve o tramento para cerca de 180 pessoas, sendo em média, ao mês, 120 alagoanos.
Mundaka afirma que se interessou pela medicina canábica, como é denominado o tratamento, após precisar socorrer um paciente de 135 quilos que havia infartado. Devido ao peso, ele danificou a coluna.
“Depois daquele dia, minha coluna nunca mais foi a mesma. Durante meses sofri de intensas dores que me deixaram dependente de analgésicos e anti-inflamatórios. Desenvolvi uma gastrite medicamentosa que me atrapalhou muito. Decidi procurar outras alternativas. Já era curioso e apaixonado por plantas medicinais. Foi então que decidi pesquisar e testar o canabidiol e funcionou muito bem no meu caso. Constatei que ele poderia ser uma opção terapêutica com poucos efeitos colaterais”, lembra.
Um dos poucos profissionais da saúde a prescrever o tratamento em Alagoas, ele elenca que a cannabis medicinal provoca relaxamento muscular, tem ação anticonvulsionante, atua contra náuseas e vômitos, tem efeitos ansiolíticos, reduz efeitos colaterais de outros medicamentos, reduz a sialorreia ou hipersalivação, dentre outros efeitos.
“Na minha prática clínica, uso óleos aplicados na mucosa oral, mas também existe o uso inalatório, por meio de vaporizadores. Importados, temos cápsulas, óleos, sprays e supositórios”, informa o médico.
Ele explica que os principais componentes da cannabis são o “THC” ou tetrahidrocanabinol, que tem potencial de causar dependência, quando exposto em combustão ou, popularmente falando, quando é ‘fumado’, e o “CBD” que é o canabidiol, com potencial terapêutico e é usado no tratamento de epilepsia, esclerose múltipla, esquizofrenia, mal de Parkinson, autismo e dores crônicas.
“Existem 27 variedades modernas de cannabis. Fumar a planta significa adulterar os componentes durante a combustão do cigarro na procura do “THC” ou tetrahidrocanabinol que pode causar dependência, sem muito poder medicinal. Já nos óleos e extratos [via oral], os componentes são bem aproveitados. Já o canabidiol não é psicoativo, ou seja, não dá aquele ‘barato’ procurado pelos apreciadores da planta. O uso recreativo, portanto, não faz parte da terapia canábica”, esclarece.
O cirurgião-dentista alagoano e secretário-geral da Sociedade Brasileira de Odontologia Canabinoide, Edyerk Lira, também prescreve medicamentos a base do canabidiol para pacientes, especialmente, aqueles que têm bruxismo.
“Prescrevo óleos e pomadas de cannabis para pacientes que apresentam patologias e necessitam desse tipo de tratamento, como os que têm bruxismo, neuralgia do trigêmeo e dores orofaciais”, afirma, ressaltando que tem, em média, 50 pacientes que fazem uso do tratamento em Alagoas.
“Os pacientes que apresentam bruxismo normalmente acordam com dores nos músculos da face e no pescoço. A maioria desses pacientes são ansiosos e dormem muito mal. Pois não apresentam um sono reparador. Após o uso dos fitocanabinoides, eles melhoram a qualidade do sono, não sentem mais dor ou cansaço nos músculos da face e sentem-se mais dispostos durante o dia. A maioria deles relatam que voltaram a sonhar. Pois não sonhavam”, expõe.
Aspectos jurídicos da cannabis medicinal no Brasil
No Brasil, o primeiro passo dado sobre o uso medicinal da planta foi em 2014. Naquele ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou, por meio da resolução nº 2.113/2014, o uso compassivo do canabidiol, que é um dos compostos da planta, para o tratamento de casos específicos de epilepsias em crianças e adolescentes, quando os tratamentos convencionais não tivessem surtindo o efeito desejado.
Com o tempo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação limitada de medicamentos a base da cannabis ou aquisição em farmácias de produtos restritos e onerosos. Segundo o advogado Victor Mansur Uchôa, que presta assistência jurídica ao Instituto de Ciências Cannabinoides (ICCA), outro voltado para o tema em Alagoas, os medicamentos custam R$ 2 mil por frasco de poucos mililitros que duram, em média, 15 dias. “Valores de quase R$ 5 mil por mês somente com um medicamento não são para qualquer um”, expõe.
Ele explicou em entrevista à Gazeta de Alagoas que algum progresso no sentido de acesso aos medicamentos foi possível por meio de liminares proferidas pelo Poder Judiciário. No Brasil, não é permitido o cultivo e a comercialização dos produtos a base de cannabis e o cultivo só foi cedido para poucas pessoas e associações por vias judiciais, pois não há regulamentação.
Em todo o país, somente uma associação, localizada na Paraíba, tem liminar na Justiça que autoriza a comercialização dos produtos medicinais a base da planta. É a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), que possui milhares de associados.
“Esse progresso cabe em grande parte graças ao Judiciário, que devido às associações e seus representantes, vêm gradualmente garantindo algumas vitórias, como por exemplo a ABRACE, a APEPI e tantas outras. Sinda assim, algumas centenas de Habeas Corpus espalhados por mais de 17 estados da Federação, que garantem o plantio individual ou familiar”, explica o especialista em Direito Médico.
Atualmente, há uma insegurança jurídica para quem cultiva, extrai, comercializa e até consome para fins medicinais pela falta de regulamentação. Por um lado,tem-se a Anvisa, que já se posicionou de forma restrita e não abarca a amplitude de necessidades dos pacientes. Do outro, não há matéria aprovada no Congresso sobre o tema.
“Hoje no Brasil pode usar quem pode pagar por ele valores altíssimos, um outro grupo de pessoas que conseguiu na justiça o acesso ao medicamento, que hoje tem um custo altíssimo, também quem conseguiu acesso se afiliando a associações sérias por meio de liminares, que podem inclusive serem cassadas, fazem a produção e extração.
O restante da população, ou não tem acesso, ou não tem condições de contratar médicos para seus diagnóstico, realizar exames, e muito menos contratar advogado”, expõe o advogado Victor Mansur.
Ele afirma ainda que, como não há regulamentação por meio de lei ou da própria Anvisa de forma ampla, muitas pessoas que cultivam e extraem para uso medicinal podem ser ciminalizadas e até enquadradas no crime de tráfico de drogas.
“Assim, uma pessoa que não pode ter acesso a médicos ou a advogados e decide fazer um cultivo para tratar de sua doença ou de um familiar, e mesmo que seja uma pequena produção, ainda que menor das autorizadas por meio de Habeas Corpus preventivo, pode, e em muitos casos estão sendo presos, tratados como criminosos, como traficantes, e respondendo a processos onde as penas podem chegar a mais de 15 anos de prisão”.
Desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 399/2015, que viabiliza a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação, permitindo assim que não haja necessidade de importar os produtos.
“Quando [o projeto] anda e toma forma, retira-se de pauta, pede-se vista e se manipula por interesses políticos que não se sabe se é por questões eleitoreiras, se por lobby político, ou mesmo pelo simples preconceito ou desconhecimento. Mas precisamos de tantos outros quantos necessários”, expõe o advogado. Mansur lembra que na última terça-feira (14), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão inédita que garante, preventivamente, o cultivo.
A decisão foi proferida por unanimidade na Sexta Turma do órgão e beneficiou três pessoas – abrindo precedentes para outros pacientes – dando a elas o direito de cultivar a Cannabis sativa para extrair óleo medicinal para uso próprio sem que corram risco de sofrerem repressão por parte da polícia.
Os pacientes já usavam o canabidiol, importando o medicamento, mas entraram na Justiça para cultivar, pois sentiam dificuldades em prosseguir com o tratamento, por ser muito custoso. Elas se tratam contra o câncer, insônia e ansiedade generalizada.
Ao julgar dois recursos sobre o tema, um de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz (em segredo de Justiça) e o outro do ministro Sebastião Reis Júnior, o colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.
“Mas ainda é uma questão e um tema necessário de regulamentação, pois como se percebe, é por meio de um Habeas Corpus, pois a conduta é criminalizada e não por meio de autorização legal ou regulamentar”, complementa o advogado.
“A melhora na vida de um paciente com a terapia canábica é inestimável. Toda sua vida melhora muito após o uso regular da cannabis. É uma planta incrível. Sagrada”, finaliza o paciente, Victor Manoel, que abriu essa reportagem.
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