Uma vegetação que se adapta às variações salinas. Um bioma que abriga espécies exclusivas. Um ambiente ameaçado. Os manguezais são ecossistemas litorâneos considerados fundamentais na proteção do planeta contra as mudanças climáticas. Além de atuarem como amenizadores do efeito estufa, ao sequestrar óxido de carbono da atmosfera, ainda servem como barreira contra a erosão e como berçário natural de espécies.
O Brasil é o segundo país com maior extensão de mangues. O bioma ocupa 87% de todo o território nacional, o que representa em números absolutos uma área total de 12.114 km², espalhada em 120 unidades de conservação pelo país, de acordo com dados do Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
No entanto, estimativas apontam que 25% dos manguezais no Brasil foram destruídos desde o começo do século XX, devido, principalmente, ao desenvolvimento costeiro inadequado e à carcinicultura, a técnica de criação de camarões em viveiros.
Cenário Alagoano
Estima-se que Alagoas perdeu cerca de 14% de sua área de manguezais em 17 anos, conforme dados da segunda coleção de mapas do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas), feito pelo Observatório do Clima em colaboração com 18 instituições. Apesar de grande, a redução foi menor se comparada com a perda nacional de 20%.
Conforme aponta o Centro Nacional de Monitoramento e Informações Ambientais (Cenima), o estado alagoano possui 5.535 hectares (ha) de área de manguezais, o que representa 0,2% de todo o seu território e 0,4% do território total de mangues no Brasil.
Ainda de acordo com o Atlas, em muitos locais, a presença das cidades às margens da laguna Mundaú e da laguna Manguaba comprometem as condições naturais de vida desse importante ecossistema, pois as demandas por ocupação e por atividades de lazer e de turismo vêm aumentando de forma acelerada.
Esta importante luta pela preservação dos mangues e das espécies em que nele vivem impulsionou a criação do projeto piloto Pró-Manguezais em Alagoas.
Iniciativa Pró-Manguezais
O Pró-Manguezais foi criado pelo Ministério Público Estadual de Alagoas (MPAL), sendo uma iniciativa da 4ª e 5ª Promotorias de Justiça da Capital. Lançado em 2022, o projeto é dedicado à recuperação, conservação, proteção e uso sustentável dos recursos em ecossistemas manguezais.
Ele conta com a participação de gestores municipais, estaduais, federais e Organizações Não Governamentais (ONGs) ligados ao meio ambiente, por meio da assinatura de um termo de cooperação técnica.
Inicialmente, participavam somente o Ministério Público Federal (MPF), a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Instituto para Preservação da Mata Atlântica (IPMA), a Secretaria do Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Alagoas (Semarh) e as Secretarias Municipais de Meio Ambiente.
Já em 2023, o projeto passou a contar também com a participação da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), do Instituto Biota de Conservação e do negócio de impacto Nosso Mangue.
A princípio, foram selecionados apenas três municípios para a proposta piloto: Marechal Deodoro, Barra de São Miguel e Roteiro. Mas o intuito é expandir o programa para todo o estado.
Em entrevista à reportagem, a promotora de Justiça do MPAL Lavínia de Mendonça Fragoso afirmou que o projeto, além de buscar a proteção e conservação das áreas de mangue que já existem, pretende ampliar essas regiões, buscando, inclusive, a melhoria da qualidade ambiental delas.
“Apesar de toda a relevância dos manguezais, eles são extremamente vulneráveis, ameaçados e cada vez mais degradados. Então, isso vai refletir tanto nas espécies que neles vivem, da fauna e flora, mas também nas comunidades tradicionais”, pontuou.
O que são os manguezais?
Os manguezais são ecossistemas costeiros que fazem a conexão entre o ambiente marinho e o terrestre, formados principalmente em estuários, baías e reentrâncias. São biomas localizados em áreas de clima tropical e subtropical do planeta, que funcionam como habitat para várias espécies, como caranguejos.
Uma característica própria dos manguezais é o solo úmido, salgado, lodoso, pobre em oxigênio e rico em nutrientes, que apresenta um odor característico devido à grande quantidade de matéria orgânica em decomposição.
Segundo o professor Alexandre Oliveira, coordenador do Laboratório de Pesquisas em Estuários e Manguezais (LAPE) da Universidade Federal de Alagoas, o mangue serve como berçário natural para várias espécies.
“Os manguezais são ecossistemas imprescindíveis aos biomas marinhos-costeiros pois fornecem grande parte dos nutrientes utilizados pelos organismos em suas cadeias e teias tróficas, além de fornecer abrigo contra predadores e servir como local de reprodução, em várias fases de desenvolvimento, de diversas espécies marinhas e de água doce”, explicou.
Características da fauna e flora
O manguezal é composto por uma gama diversa de organismos animais, desde minúsculos invertebrados aquáticos e mamíferos de médio porte, como peixe-boi e tamanduás, até organismos vegetais, como algas e árvores de grande porte.
Alexandre explica que há espécies que são exclusivas do ecossistema manguezal e que grande parte da vida marinha está ameaçada de extinção, a exemplo do caranguejo guaiamum (Cardissoma guanhumi), espécie exclusiva do manguezal que está em risco devido à captura e comercialização proibidas.
“Organismos como o caranguejo-uçá, o sururu e os peixes robalo e tainha são de extrema importância socioeconômica-cultural-ecológica para os manguezais e comunidades tradicionais que utilizam de seus recursos para sua subsistência. Sem o manguezal, nenhum destes recursos estará disponível”, destacou o pesquisador.
Em entrevista à reportagem, o engenheiro civil e presidente do Instituto para Preservação Mata Atlântica (IPMA), Fernando Pinto, afirma que ainda existem outras espécies que também são ameaçadas, como o gavião-caranguejeiro e o papagaio-do-mangue.
“Várias espécies nativas, não só as aves da Mata Atlântica, utilizam o manguezal em busca de alimentação e abrigo, e algumas chegam a nidificar, a exemplo do papagaio-do-mangue”, elucida.
O presidente informou que o IPMA, junto ao Pró-Manguezais, está desenvolvendo o Plano de Ação Estadual do Papagaio-do-Mangue. O projeto, voltado à conservação da fauna dos manguezais, visa recuperar, tratar, soltar e reintroduzir as aves nos ecossistemas. “O plano de ação já está pronto e vai ser publicado no Diário Oficial para formalização”, comentou.
Por que os manguezais são tão importantes para a natureza?
O manguezal é um conhecido aliado contra o aquecimento global por reter grandes quantidades de carbono no solo. Este mesmo carbono, encontrado nas terras dos manguezais, é futuramente dissolvido nos oceanos, regulando a quantidade de dióxido de carbono e melhorando a qualidade do ar.
Como afirma o professor Alexandre Oliveira, a vegetação atua na manutenção da biodiversidade marinha e tem um papel importante na conservação e proteção da costa e processos erosivos costeiros. Esta característica também é essencial para a proteção litorânea contra tempestades, já que o mangue age como um muro que reduz os impactos dos fenômenos naturais.
“Em áreas de ocorrência de tsunamis, os manguezais são fundamentais para a retenção das ondas e perda de ambientes costeiros. São excelentes protetores da costa também no caso de tempestades tropicais”, ressaltou o especialista.
Além das questões ambientais, o bioma desempenha também funções sociais importantes, como na sustentabilidade das comunidades locais. Um exemplo disso é a participação na atividade pesqueira, dado que o mangue é responsável pela maior parte do alimento que é capturado no mar, como peixes, moluscos e crustáceos.
Outra importante ação desenvolvida pelo ecossistema é o turismo, visto o crescente avanço do ecoturismo, do turismo de contemplação e do turismo de experiência, que são praticados nesses tipos de ambientes.
Inovação e turismo
“O Nosso Mangue surgiu por causa da minha história de vida. Aos meus 12 anos, comecei a participar de programas socioambientais na comunidade. Sempre quis dar um retorno para a sociedade e para o meio ambiente, principalmente aos manguezais, por todo conhecimento que adquiri e por toda vez que a lagoa e os manguezais mataram a fome da minha família. Pois sou de uma família de pescadores”.
O relato é de Mayris Nascimento, que hoje é CEO do negócio de impacto Nosso Mangue. Ela conta como o envolvimento da sua família com a pesca contribuiu para que criasse um negócio voltado à recuperação, preservação e conservação dos manguezais em Alagoas.
Funcionando no bairro Pontal da Barra, em Marechal Deodoro, o Nosso Mangue promove passeios em rotas ecológicas, por meio do Turismo de Experiência e Regenerativo, com o intuito de manter financeiramente o negócio. O conceito desse tipo de turismo surge da ideia de recuperar e não apenas evitar danos.
Além de gerar emprego e condições de trabalho para a comunidade que vive em volta do mangue, ele favorece a relação do turista com a região, ajudando também na preservação e conscientização sobre os manguezais. Os passeios são feitos em embarcações com no máximo de oito pessoas.
“Divulgamos os cronogramas de agendamento nas redes sociais, principalmente no instagram @nossomangue. Durante o passeio, contamos as histórias da comunidade, mostramos uma área já recuperada e uma não recuperada, além de plantarmos as mudas de mangue”, explica a CEO.
Para Mayris, o principal desafio enfrentado para promover a conscientização da população sobre a importância dos manguezais, é quebrar o paradigma da falta de acesso ao conhecimento aprofundado sobre o ecossistema em si.
“Embora reconheçam a importância do manguezal, procuramos também destacar outros aspectos, como a relevância desse ecossistema na minimização das mudanças climáticas. Além disso, buscamos integrá-los ativamente nesse processo de construção, fazendo com que participem ativamente”, reforça.
Para envolver ativamente os moradores locais e o restante da população, a CEO conta que são realizadas ações de conscientização, com foco, sobretudo, na importância fundamental das escolas. “No ano passado, nos aproximamos mais da escola da comunidade e iniciamos a formação dos Protetores dos Manguezais. Durante essa iniciativa, conduzimos oficinas de discussão sobre temas ambientais, utilizando uma abordagem ilustrativa e promovendo debates entre os participantes”.
Sobrevivência através dos manguezais
“Antigamente, há uns 15 anos atrás, a gente saia para pescar e a gente sabia que voltaria com alimento e peixe para vender. Hoje em dia, a gente sai para arriscar, sabendo que pode pegar ou não pegar nada”. É assim que Evanildo do Amor Divino, morador do bairro Vergel do Lago e pescador, relata como é a rotina das famílias que sobrevivem da pesca e do extrativismo nos manguezais e compartilha as dificuldades que enfrenta no seu dia-a-dia devido à crescente degradação das áreas de mangue.
Evanildo é baiano e conta que pesca com o pai desde os cinco anos de idade. “Eu comecei pescando na Bahia, depois vim morar aqui e continuei com a pesca, já faz 31 anos”.
Ele explica que costuma pescar na Lagoa Mundaú, em Marechal Deodoro e na praia. Entre os tipos de peixes e crustáceos que costuma apanhar nos manguezais, estão o camarão, siri, caranguejo, peixes como o camorim, o carapeba, o bagre e a tainha.
O pescador relata que, após o colapso parcial da Mina 18, no Mutange, os pescadores foram proibidos de acessar a área, então as pescas na lagoa Mundaú cessaram. Segundo ele, em Marechal, apesar das águas serem mais limpas, há poucos peixes, devido à falta do sururu na região.
Evanildo conta que, agora, pega qualquer tipo ‘bico’ para se manter, pois as situações das lagoas têm afetado muito a obtenção de renda pela pesca: “Às vezes eu faço outras coisas porque a pesca está ruim demais e tem que procurar outra coisa para fazer, senão passa fome. A situação está muito difícil para todos nós”.
Evanildo reforça a importância de cuidar cada vez mais dos manguezais. “O manguezal é importante para todos nós, pois se preservamos ele, sabemos que vamos ter peixe. Quando o meio ambiente é degradado, acaba com tudo, até com a gente mesmo. Se os órgãos competentes não olharem para as nossas lagoas, elas irão morrer”.
Extrativismo e sustentabilidade
A principal atividade econômica presente nas áreas de manguezal é a pesca. A coleta de caranguejos e mariscos e a pesca de peixes e camarões estão entre as atividades extrativistas mais relevantes nesse ecossistema, que contam com a mão de obra familiar.
Conforme o Atlas dos manguezais no Brasil, foram contabilizadas cerca de 15 mil famílias nos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Bahia e Alagoas que vivem em unidades de conservação com manguezal.
Mayris, a CEO do Nosso Mangue, defende que uma estratégia para promover a conservação e sustentabilidade durante as práticas de extrativismo seria a estruturação de um arranjo produtivo local.
“Isso envolveria o respeito aos períodos de defeso [proteção durante a reprodução] de cada espécie, enquanto se desenvolve uma sobreposição estratégica. Por exemplo, durante o período de defeso do caranguejo Uçá, poderia ser iniciado um arranjo produtivo paralelo, como o cultivo de ostras”, explica.
Para ela, a abordagem proporciona benefícios significativos. “As comunidades locais não seriam impactadas negativamente. A diversificação das atividades econômicas, como o cultivo de ostras, poderia contribuir financeiramente para as famílias, promovendo a sustentabilidade ambiental e socioeconômica na região.
Desafios
Segundo o doutor em Zoologia e presidente do Instituto Biota de Conservação, Bruno Stefanis, um dos principais desafios enfrentados pelos mangues atualmente está relacionado ao setor de especulação imobiliária. Isto é uma realidade latente, uma vez que a maior parte das regiões ao redor dos manguezais são locais nobres e de turismo.
“Hoje um dos principais vilões do sistema manguezal é a especulação imobiliária. A gente tem muito mais de trabalhar com fiscalização junto às invasões desse território que é protegido do que propriamente com a questão populacional”, ressaltou o biólogo.
O doutor afirma que, em um panorama geral, a população está cuidando bem dos mangues, retirando sua fonte de subsistência da região manguezal, mas que é comum aparecer pessoas interessadas em aterrar a área para construir condomínios.
Este ponto também foi destacado por Mayris, que esclareceu sua preocupação. “Essas práticas representam desafios contínuos que exigem esforços coordenados para garantir a preservação desse valioso ecossistema”. A CEO do Nosso Mangue ainda trouxe o soterramento e o alagamento como práticas que ameaçam a existência do manguezal e dos processos ecossistêmicos derivados dele.
Mais um desafio enfrentado pelo bioma é a prática da carcinicultura, que consiste na criação de camarões em viveiros. Estudos do Atlas dos Manguezais estimam que entre 38% a 50% da destruição global das áreas de manguezal no Brasil derivam dessa prática.
Outro problema, destacado pela promotora Lavínia Fragoso do MPAL, é a falta de conectividade entre os fragmentos de manguezais existentes. “Vamos tentar fazer esses corredores, buscar uma ligação, interligação entre eles”.
Também estão entre as problemáticas em torno da preservação desse ecossistema, a exploração dos recursos naturais, a poluição com agrotóxicos, a contaminação por esgotos, a pesca predatória e os crimes ambientais, como queimadas.
Devido ao constante perigo de desaparecimento que esta vegetação vive, atualmente, 61,9% dos manguezais remanescentes no país estão localizados dentro de Áreas de Proteção Ambiental APA, uma das categorias do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
Em entrevista à reportagem, Alex Nazário, geógrafo de formação e atual gerente de Unidades de Conservação do IMA, esclarece que o órgão é responsável por receber denúncias e realizar o monitoramento e fiscalização de áreas que são protegidas.
Ele afirma que as áreas de mangue devem ser preservadas independentemente de estarem localizadas em unidades de conservação ou não: “Elas não precisam estar dentro de uma área protegida para que sejam protegidas. Infelizmente, não é assim que acontece, existem muitas interferências”.
Como combater a degradação dos mangues?
De acordo com a promotora Lavínia Fragoso, o primeiro objetivo do Pró-Manguezais para combater a degradação dos mangues foi fazer um diagnóstico mostrando a recente situação desses ecossistemas. Ela detalha que, atualmente, também estão sendo realizadas outras ações, como o mapeamento das áreas, a elaboração de um plano de ação para conservação da fauna e a promoção de atividades de educação ambiental.
Uma medida que merece destaque é a implantação de viveiros para produção de mudas nos municípios do litoral alagoano nos três municípios do projeto. “Nós já temos os projetos prontos, inclusive o primeiro viveiro vai ser instalado lá no Instituto Federal de Alagoas (IFAL) na região de Marechal de Deodoro”.
“A gente tem que fazer também uma atividade visando tanto a conservação quanto o uso sustentável, porque a gente não pode esquecer que várias pessoas, principalmente os pescadores, tiram dali o seu sustento”, argumenta.
Em entrevista à reportagem, a engenheira sanitarista ambiental, geógrafa e mestre em Tecnologias Ambientais, Kadja Mendonça, integrada desde 2019 à equipe do Pró-Manguezais, explicou que a fase de planejamento e elaboração do plano de trabalho, bem como dos levantamentos cartográficos iniciais foi concluída. “Agora, a equipe técnica está iniciando a fase de execução em campo e elaboração de evidências”.
Ela afirma que o trabalho de Cartografia Social consiste em promover o contato entre pesquisadores, público-alvo e dados, pois isso permitirá quantificar e localizar comunidades e pessoas que sobrevivem de atividades com recursos oriundos dos manguezais. “A contribuição dos moradores locais será intensificada na fase que está se iniciando, a de execução”.
A engenheira ambiental pontua que “proteger o manguezal é e continuará sendo uma missão para quem vive o manguezal, além de ser um dever de todos”.
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