Um ato de violência marcou profundamente a cidade de Maceió em 1º de fevereiro de 1912. Naquele tempo, babalorixás e yalorixás foram espancados e assassinados durante o período de repressão e intolerância religiosa que pairava sobre todo o Estado. Era um período de perseguição e de medo orquestrado por uma elite econômica que disputava o poder na esfera política local.
Sob o pretexto de caçar possíveis “feiticeiros” e “demônios”, milicianos armados da intitulada Liga dos Republicanos Combatentes profanaram templos e destruíram objetos de cultos sagrados. O evento ficou conhecido como “Quebra de Xangô” e marcou negativamente o nosso estado.
Por anos essas religiões foram perseguidas e suas práticas banidas. A intolerância nunca deixou de existir, mas em pleno século XXI, a balança que pendia para a injustiça de uma população marginalizada religiosamente talvez esteja sendo equilibrada. A nova “quebra”, agora se traduz no fim de um padrão e de um possível estereotipo social.
As religiões de matrizes africanas são conhecidas por agregar pessoas de origem humilde, historicamente negras e com menos acesso à educação, mas dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam uma mudança no perfil do praticante. De acordo com o IBGE, dos novos adeptos das religiões afrobrasileiras, 47% são brancos, sendo que cerca de 13% destes fiéis possuem um nível superior completo. A avaliação divulgada no mês passado foi feita em todo território nacional e faz parte de um estudo do Censo Demográfico realizado em 2010.
Para o professor de antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Bruno César, a adesão dessa elite econômica não é novidade em Alagoas e se traduz com bastante naturalidade. “Em primeiro lugar, avalio como algo normal e que revela uma mudança de posicionamento na prática das pessoas e nas representações sociais sobre as escolhas individuais em matéria de religiosidade”, afirma.
De acordo com o educador, a escolha de uma elite de origem branca pela devoção a cultos afrobrasileiros faz parte de uma conexão antiga, enraizada ainda no mesmo período histórico em que houve o Quebra de Xangô. “Podemos estabelecer conexões com o nosso próprio passado recente e constatar que não é tão novidade quanto parece essa aproximação da classe média ou de setores ditos elitistas. Não devemos esquecer que no período das perseguições, como o do Quebra em 1912, segmentos de nossas elites econômicas e políticas frequentavam os terreiros e, em certos casos, aderiram aos rituais regularmente”, destaca.
O professor citou o exemplo do Quebra de Xangô por conta da sua motivação: uma briga política envolvendo o ex-governador Euclides Vieira Malta e a oposição liderada pelo advogado Fernandes Lima. Segundo o antropólogo Ulisses N. Rafael, o ato contra as religiões afrobrasileiras surgiu após uma suspeita de que Euclides Malta, que estava há 12 anos no poder, se mantinha no mesmo por meio de “feitiçarias” provenientes desses cultos. “O que mudou foi o modo como essa religiosidade passou a ser encarada por amplos setores da sociedade, hoje com maior respeito e reconhecimento de seus direitos, de suas características litúrgicas e de seus sistemas de valores”, argumenta Bruno César.
Polarização da fé
O educador avalia ainda que a pesquisa do IBGE sobre a fé no Brasil é “um pouco exagerada”. Para ele, há uma aparente tentativa de polarizar o debate ao insinuar que uma religião seria mais ou menos “adequada” para grupos de classes sociais, com sua disseminação entre estratos médios e altos (e ‘brancos’) da sociedade, e outra originária de pobres e preponderantemente ‘negros’.
O ponto de vista do educador é o mesmo adotado pelo jovem de classe média e adepto do Candomblé, Daniel Gêda. “Religiosidade Afro não tem nada a ver com classe ou status social. Acredito que o amor aos orixás, a ancestralidade vem muito antes de tudo isso, o amor a Olórun (Deus) e ao seu próprio axé… As perseguições não acabaram totalmente, ainda existe muita intolerância religiosa e preconceito por parte de pessoas mal informadas, manipuladores ou manipuladas por outras vertentes que se dizem o ‘único caminho de deus’”, diz.
Daniel é um dos filhos de santo do babalorixá Célio Rodrigues (pai Célio de Iemanjá) e participa dos ritos espirituais do Ylé Asé Yá Ogunté (Casa de Iemanjá), localizada na Ponta da Terra, e ressalta os objetivos da crença acima de qualquer restrição de cor ou classe social. “Nós religiosos de matrizes africanas aceitamos e acolhemos para cuidar e zelar por vidas. Não importa a classe social, cor de pele, orientação sexual ou mesmo sua religião anterior. O que realmente importa é o respeito às diversidades, o amor e o cuidar de quem precisa”, avalia.
AL24hs
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